segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Biografia de D. Pedro I e reflexões sobre a justiça na "Crónica de D.Pedro I" de Fernão Lopes


Oitavo rei de Portugal, quarto filho de D. Afonso IV e de Beatriz de Castela.

Casou primeiro com Branca de Castela, a quem repudiou por debilidade física e mental. Casou depois com Constança Manuel, filha de um fidalgo castelhano que, quando veio para Portugal, trouxe consigo Inês de Castro.

A ligação amorosa entre o infante D. Pedro e Inês de Castro foi imediata, o que provocou forte conflito entre D. Afonso IV e seu filho e causou a morte prematura de Constança Manuel. Temendo o monarca a nefasta influência dos Castros em seu filho, resolveu condenar à morte Inês de Castro, o que provocou a rebelião de D. Pedro contra si. Contudo, a paz entre o pai e o filho foi estabelecida em breve e D. Pedro foi associado aos negócios do Estado, ficando-lhe desde logo incumbida uma função que sempre haveria de andar ligada à sua memória – a de exercer justiça.

Durante o seu reinado evitou guerras, logrando aumentar o tesouro. Cunhou ouro e prata e exerceu uma justiça exemplar, sem discriminações, julgando de igual modo nobres e plebeus.

Os documentos coevos e o testemunho de Fernão Lopes definem-nos D.Pedro como justiceiro, generoso, folgazão, amado pelo povo e de grande popularidade. Sobre a sua morte o povo dizia que «ou não havia de ter nascido, ou nunca havia de morrer».

No prólogo da "Crónica de Pedro I", Fernão Lopes alonga-se nas reflexões sobre a justiça, como forma de preparar a narração subsequente do reinado de D.Pedro, marcado pela forma como, muitas vezes, o rei exerceu rígida e compulsivamente essa virtude que "husou muito", (ll. 51-52).
Tratando-se de um prólogo, o texto antecipa as considerações sobre a prática da justiça suscitada pelo relato da atuação do monarca.





quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

A figura feminina na poesia de Cesário Verde


(Leitura comparada dos poemas “A débil” e “Deslumbramentos”. )


Em ambos os poemas estamos perante uma vincada presença feminina, de características diametralmente opostas, que causa determinados efeitos no sujeito poético.

No poema “A débil” assistimos à descrição de uma figura feminina natural e simples, ligada ao campo e ao povo. Esta mulher é “bela, frágil, assustada” (v. 2), associando-se à naturalidade rural e a todos os seus aspectos positivos, não se enquadrando no ambiente citadino por ser honesta e pura (“Numa existência honesta, de cristal.”, v. 4). Atente-se, ainda, na sua simplicidade e elegância (“Esse vestido simples, sem enfeites,”, v. 19, “(…) e sem ostentação /Atravessavas branca, esbelta e fina”, vv. 37 e 38). 

Simultaneamente, o “eu” feminino exerce um efeito positivo no sujeito poético, já que a sua presença impele-o a largar os malefícios urbanos (Mandei ir a garrafa, porque sinto/ Que me tornas prestante, bom, saudável”, vv. 11 e 12). Esta mulher revela uma faceta protectora no “eu” poético, que sente um dever de auxílio perante esta figura “fraca e loura” (v. 6). 

 Já na composição poética “Deslumbramentos”, estamos perante a mulher fatal e sedutora, ligada à cidade. Assume uma postura altiva e fria (“E enfim prossiga altiva como a Fama,/ Sem sorrisos, dramática, cortante;” vv. 29 e 30). Esta figura representa a artificialidade da mundividência citadina, evocando as desigualdades sociais aí presentes (“Quando passa aromática e normal,/ Com seu tipo tão nobre e tão de sala,/ Com seus gestos de neve e de metal.” vv. 2-4). Por fim, evidencia uma postura elegante e luxuosa, típica do seu estatuto social elevado (“Ir impondo toilettes complicadas!”, v. 8). 

Ao longo deste poema, o sujeito poético, apesar de se sentir atraído pelo “eu” feminino, deseja vingar-se, já que ela é o reflexo das desigualdades sociais presentes no ambiente citadino, (“Mas cuidado, milady, não se afoite,/ Que hão de acabar os bárbaros reais;” vv. 33 e 34). 

 Concluindo, em ambos os poemas encontramos mulheres típicas do campo e da cidade, registando-se um binómio que se caracteriza por retratos diametralmente opostos.



A Débil

Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.

Sentado à mesa dum café devasso,
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando socorreste um miserável,
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.

"Ela aí vem!" disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, — talvez que não o suspeites! -
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.

Ia passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu saí. Doía-me a cabeça.
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.

Adorável! Tu, muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.

Sorriam, nos seus trens, os titulares;
E ao claro sol, guardava-te, no entanto,
A tua boa mãe, que te ama tanto,
Que não te morrerá sem te casares!

Soberbo dia! Impunha-me respeito
A limpidez do teu semblante grego;
E uma família, um ninho de sossego,
Desejava beijar sobre o teu peito.

Com elegância e sem ostentação,
Atravessavas branca, esbelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E de altos funcionários da nação.

"Mas se a atropela o povo turbulento!
Se fosse, por acaso, ali pisada!"
De repente, paraste embaraçada
Ao pé dum numeroso ajuntamento.

E eu, que urdia estes fáceis esbocetos,
Julguei ver, com a vista de poeta,
Uma pombinha tímida e quieta
Num bando ameaçador de corvos pretos.

E foi, então, que eu, homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és tênue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.


Deslumbramentos


Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.

Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!...

Em si tudo me atrai como um tesouro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de ouro
E o seu nevado e lúcido perfil!

Ah! Como me estonteia e me fascina...
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!...

Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!

O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demônio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo!

Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.

E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como um brilhante.

Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.

E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!



Cesário Verde, in O Livro de Cesário Verde